Desde o início de 2020 estávamos vivendo como os mensageiros de Jó. Víamos os noticiários, familiares morriam e não podíamos nos despedir por conta das limitações que a pandemia trouxe e o próprio vírus também vitimava nossos queridos, mas nós escapávamos para contar o ocorrido. E foi assim por sete meses.
Me lembro de não estar nada bem e não ter paz pra viver os meus dias quando tive a ideia de trazer meus avós para viverem comigo, aproveitando a oportunidade, pois eles não estavam vivendo um momento muito bom na cidade em que moravam. Demorou um pouco, mas eles optaram por aceitar meu convite e vieram. Juntos nós cuidamos da saúde, nos fizemos companhia, vivemos momentos maravilhosos, conquistas e planejávamos viver muito mais. Choramos nossos lutos e tentávamos nos recuperar deles. Vivíamos a vida que tínhamos para cada dia e parecia que isso duraria muito tempo. Parecia.
Todo mundo sabe que faz parte do ciclo natural: nascer, crescer, viver e morrer, mas a gente não tem noção do tempo que vai levar até que o ciclo se complete. E o tempo é um para cada um. Cada história é diferente. E meus avós, nasceram os dois, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial e cresceram enquanto o mundo se recuperava da pior vergonha, da maior crueldade vivenciada e praticada por seres humanos naqueles tempos. Eles, apesar de ainda serem crianças, ouviram pelo rádio e acompanharam pelos jornais e revistas da época a Seleção Brasileira de Futebol perder, em casa, a Copa do Mundo de 1950. Se não fosse pela Guerra, o torneio teria sido realizado nos períodos normais anteriores e teria ocorrido no Brasil bem antes que pudessem ter ciência, mas como a Europa estava em ruínas e os jogos ficaram paralisados por tanto tempo, nosso país se ofereceu à Federação Internacional de Futebol para sediar o evento. Enquanto cresciam tinham que lidar com todas as dificuldades da vida humilde e difícil que levavam junto às suas famílias de origem. Meu avô, inclusive, assistiu o pai adoecer, ser levado de casa para o que fora o holocausto brasileiro em Barbacena – MG e anos mais tarde, sem explicação, receber com sua mãe e seus irmãos uma carta do sanatório dizendo que o pobre homem lhes havia deixado órfãos e por ninguém reclamar o corpo foi sepultado como indigente. Apesar de tudo puderam viver a infância, a adolescência da maneira que lhes era possível e trabalhando para ajudar no sustento de casa. Eles eram primos primeiros e se casaram com o acordo de ele aceitar criar dois sobrinhos da minha avó que ficaram órfãos de pai de forma muito precoce, enfrentaram uma vida difícil, perderam e tiveram filhos e continuaram vivendo a vida, vencendo, perdendo, mas vivos e juntos. Viram em 2018 (68 anos depois) o Brasil perder a Copa outra vez, dentro de casa, só que muito mais perto deles, em BH, bem próximo do bairro onde moravam. É muita história, não é?! E tem mais… meu avô era um motorista muito bom e chegou a viver disso como profissão também. E ele me carregava pra baixo e pra cima de carro quando eu precisava também, até que sofreu um infarto em 2009 e não quis mais bater volante. Mas dez anos depois eu quis tentar obter minha CNH e, com muitíssima dificuldade, batalhando nos dois anos seguintes consegui. Tão felizes ficaram os meus avós que me ajudaram a comprar um carro para nos auxiliar na nossa vida diária, tendo em vista que já morávamos juntos. Desfizeram da Kombi que adquiriram Zero KM tantos anos antes para me ajudarem nisso e eles foram os meus primeiros caroneiros.
Eu nasci em 1991 e fui o primeiro neto dos meus avós. A casa deles foi o primeiro lugar que eu também pude chamar de “minha casa” e lar. Ali eu dei meus primeiros passos, disse minhas primeiras palavras. E depois muita coisa aconteceu, inclusive, eu sonhar em cuidar dos meus avós que me cuidaram e tanto me amaram. Nos últimos sete meses eu fiz o máximo que achei que podia fazer para cuidar da saúde dos meus velhinhos e tudo parecia estar muito bem. Os resultados dos exames clínicos melhoravam cada vez mais e tínhamos toda a assistência que a cidade em que vivemos nos proporciona. Havia alguns dias que ele tinha mudado seu comportamento em algumas coisas que estávamos estranhando: Ele não estava mais jantando, não cozinhava mais e evitava fechar a porta do banheiro enquanto estava lá, por exemplo. No último dia 25/03 fomos à uma consulta oftalmológica que eu havia conseguido marcar para eles e, no caminho de ida, uma tosse do meu avô me chamou atenção, mas não era nada fora do comum e, obtivemos naquela consulta médica mais notícias boas. No dia seguinte, a tosse aumentou um pouquinho e veio com sintomas gripais que começamos a tratar com antigripais comuns, chás, nada que não seja comum para qualquer família. Mas aquele fim de semana tornou-se angustiante e na segunda-feira minha avó também tinha sintomas gripais e, como são correlacionados à pandemia que vivemos, decidimos procurar ajuda médica e rapidamente fomos atendidos e naquele mesmo dia 01/03 providenciamos todos os medicamentos que haviam sido receitados pelo médico. Minha avó logo apresentou melhora, mas meu avô se entregou e se prostrou. Na terça ele já tinha dificuldades pra se locomover sozinho e estava bem fraco, nos dias seguintes só foi piorando, mas recebemos visita do médico, enfermeiro e aguardávamos o efeito dos medicamentos e nada de mais grave passava por nossa cabeça. O teste SWAB para o Coronavírus foi feito na quinta-feira e o médico ouviu os pulmões dele e disse que a escuta estava limpa. Na sexta-feira (05/03) meu avó estava abatido, e seguiu assim por todo o dia. Ele passou mal nas noites anteriores, mas eu consegui dormir, porém não nesta última noite. Ele respirava ofegantemente e dizia estar muito aflito. Medíamos a temperatura, pressão arterial, glicose e fazíamos tudo o que podíamos e obtínhamos bons resultados até que adentramos uma madrugada de muito calor e ele começou a fazer uma oração em que podíamos entender algumas palavras e outras não. Ele gostava de dormir ouvindo canções cristãs e eu coloquei um fone em seus ouvidos enquanto lágrimas correram em seus olhos. A febre, pressão arterial e respiração oscilavam e decidi acionar socorro. Enquanto a ambulância não chegava, a febre baixou, a respiração se tranquilizou e houve silêncio pela primeira vez naquelas longas horas. O socorrista e o motorista da ambulância, preparados, fizeram todos os procedimentos que já lhes são comuns, colocaram meu avô no carro e de repente nos pareceu que ele sofrera algum mal que não sei explicar, mas ele olhou ao redor e seus olhos se paralisaram num canto, as pupilas dilataram e um brilho diferente se instalou ali. Imaginei que o pior houvesse ocorrido, mas lhe deram oxigênio e seguimos para o hospital. A estrada estava limpa, vazia, nos permitindo escolher entre mão e contramão, o atendimento de urgência do pronto socorro estava vazio e escuro, não havia ninguém a não serem o motorista, o socorrista, o recepcionista e porteiro, o médico, duas enfermeiras e eu porque meu avô já havia deixado o corpo mortal. Eram 04h33min da manhã e minha vida parou também porque jamais imaginei que quase 30 anos depois de nascer e ser acolhido pelo meu avô eu o devolveria a Deus e prepararia tudo para que seu corpo fosse sepultado, além de dar a notícia à minha avó. Curiosamente na sexta-feira eu fiz o pagamento do último talão do carnê do plano funerário que nunca ousei pensar que teria que usar. Dois dias depois recebemos o resultado positivo daquele teste e a irmã mais velha do meu querido avô, por quem ele tanto orava e perguntava a Deus se havia sido esquecida na Terra também deixou este mundo.
O vento que soprou sobre tantas famílias em várias partes do mundo, trouxe uma onda forte que arrastou consigo amigos, familiares e pensei que jamais nos tocaria, mas nos tocou e nos desestabilizou fazendo com que possamos entender outra vez que tudo está sob o controle de Deus, que Ele sabe o que faz e nós não sabemos de absolutamente nada.
Meu avô me viu nos meus primeiros dias de vida e me deu de presente a graça de viver com ele bem junto a mim os seus últimos dias. O vento soprou e o levou consigo, mas nós que ficamos temos que contar que até no último instante ele guardou a fé nos fez ver que Deus nunca nos desampara.
Agora permanecem as doces lembranças, as ruins que ainda serão apagadas e a esperança de um dia nos reunirmos outra vez.
Te peço, amigo leitor, que se cuide e cuide de seus amados porque o vento nunca parece perigoso o bastante enquanto só sopra sobre outras pessoas, mas quando nos toca… Ai! Como é doloroso!